Reportagem por: Adriana Alves, Diana Gomes, Mariana Gonçalves, Michelle Coelho e Rita Sousa.
Feita em âmbito académico para a unidade curricular de Desafios Contemporâneos de Jornalismo, do curso de Jornalismo, da ESCS.

bataclan
PALCO DE COMEÇOS E FINS
O mesmo espaço, histórias diferentes.
Uma história de amor que dura há 50 anos. O local mais sangrento dos piores atentados terroristas em França. Os reflexos sentiram-se em Portugal, onde o Liceu Francês foi obrigado a reforçar a segurança.
Estas são as histórias de duas gerações de portugueses que têm em comum um local histórico: Le Bataclan.
Créditos da ilustração: Marta Brancas (aluna de Audiovisuais e Multimédia da ESCS)
O primeiro beijo. Excerto de entrevista à Aurora Pinho.
Amor à primeira dança
Os domingos eram dias de baile dançante e de festa no número 50 do Boulevard Voltaire. Centro de Paris. A sala de espetáculos Le Bataclan enchia-se de jovens que se reuniam ali para ouvir e dançar ao som da música da orquestra. O ambiente festivo convidava não apenas parisienses, mas também muitos portugueses e espanhóis que ali se juntavam para dar um pé de dança. Por isso, talvez a música fosse maioritariamente espanhola, como uma forma de agradar à clientela.
Aurora Pinho, 68 anos, vivia na cidade do Porto e tinha apenas 16 anos quando emigrou para França com os pais, o tio e os dois irmãos, Manuel e Alfredo. Eram finais da década de sessenta e em Portugal ainda se respirava os ares do Estado-Novo.
Nessa altura, não era raro haver emigrantes e exilados portugueses que fugiam do país por causa da PIDE e por estarem envolvidos em movimentos políticos proibidos na época. Em 1974 emigraram 900 mil portugueses para França, dos quais 550 mil sem passaporte de emigrante, ou seja, de forma clandestina.
“Na altura, um tio meu entrou numa manifestação política, o que era proibido, e começámos a ter problemas por causa disso. Então o meu pai decidiu ir para França com ele e assim fomos”, conta Aurora Pinho.
Foi nos arredores de Paris que Aurora e a família viveram durante 7 anos. Entre o trabalho na fábrica e a aprendizagem do novo idioma, Aurora e os irmãos aproveitavam o tempo de lazer na sala de espetáculos Le Bataclan, onde todos os domingos iam dançar: “A sala era enorme. Era mais ou menos um Coliseu. Havia uma espécie de varandas e quem não queria dançar podia ir lá para cima. Encontravam-se lá mais espanhóis do que portugueses, mas também havia portugueses”.

Autor da imagem: EC - Audiovisual Service
Foi numa dessas noites de domingo, quando Aurora tinha já 18 anos, que, enquanto dançava no meio do salão da grande sala do Bataclan, ao som de Rien qu'un homme, de Alain Barrière, cruzou os olhares com António Pinho (68), aquele que viria a ser o seu grande amor. “Ele dançava muito bem, chamou-me logo à atenção”, confessa Aurora.
Dançaram juntos e o primeiro beijo aconteceu ali mesmo, naquela noite. Foi amor à primeira dança. O pedido de casamento não tardou, e oito meses depois estavam oficialmente casados. Desde esse dia nunca mais se largaram e o Le Bataclan ficaria marcado como o palco da sua história de amor.

Aurora e António Pinho, em Paris (década de 70). Foto cedida pela própria.
António Pinho, com 19 anos na altura, era português e imigrante em França. Tal como os irmãos de Aurora, também tinha fugido ao serviço militar por não concordar com a Guerra Colonial.
Logo que o Governo de Marcello Caetano é derrubado, pondo fim a 48 anos de regime ditatorial, ficaram finalmente reunidas as condições para o regresso tão esperado a Portugal.
“Assim que se deu o 25 de Abril eu só queria sair de lá, porque Paris é muito bonito, mas eu adoro o meu país”, confessa Aurora Pinho.
Hoje, passados 50 anos de casados, fica o sonho de regressar ao sítio onde se apaixonaram, desta vez na companhia dos três filhos e quatro netos.
Aurora e António Pinto, casados há 50 anos. Imagem cedida por Ana Pinho.
O relógio marcava 21:45
Existem poucos lugares com tanta história como o Bataclan. Construído em 1864 pelo arquiteto Charles Duval, e depois batizado com o nome "Ba-Ta-Clan", uma opereta de Jacques Offenbach, o palco tem sido pisado por diversos artistas famosos. Além de Prince e Lou Reed, a lista inclui John Cale, Bufallo Bill e até o português Legendary Tigerman, entre muitos outros.
Com 155 anos de vida, foi um espaço marcado por muita dança, boa música e momentos que ficaram na História. Mas, em novembro de 2015, uma noite veio marcar para sempre a memória coletiva mundial: o Le Bataclan tornou-se o local mais sangrento dos piores atentados terroristas em França.
Às 21h45 do dia 13 de novembro de 2015, a banda americana Eagles of Death Metal estava a atuar na sala de espetáculos Le Bataclan quando três terroristas entraram armados e mataram pelo menos 89 pessoas.
O ataque veio de dentro, do interior dos camarins. O som de tiros, explosões e gritos abafou o som das baterias e das guitarras elétricas e causou o pânico de todos os que assistiam ao concerto naquela noite de sexta-feira.
O atentado nas notícias portuguesas. Capa dos jornais após o dia 13 de novembro de 2015.
Em novembro, fazem seis anos desde a noite fatídica marcada pelos ataques terroristas motivados pelo Estado Islâmico como uma "retaliação" do papel de França na intervenção militar na Síria e no Iraque.
Os acontecimentos chocaram o mundo e geraram reações além-fronteiras. Para Aurora Pinho, ver o lugar de onde guardava tão boas memórias transformar-se no palco de terror é algo que a marca até hoje. “Eu chorei quando vimos aquelas imagens. Lembrei-me logo dos tempos que passávamos lá. Mesmo depois de nos conhecermos ainda fomos lá muitas e muitas vezes, porque era um sítio muito agradável. Fiquei chocada, chocadíssima. Na altura em que estavam a dar as notícias, eu corria logo para ver”.
Fonte da imagem do antes: cartão postal do Ba-Ta-Clan na Boulevard Voltaire.
Fonte da imagem do depois: Rádio Renascença
44 anos separam o momento em que Aurora e António se conheceram e os atentados terroristas no Le Bataclan. Para o casal, o Bataclan foi o início de uma história, de uma vida. Para tantos outros, significou a morte. O tempo e a imprevisibilidade marcaram o destino de quem por lá passou, histórias ligadas por um espaço em comum, que, apesar de tudo, se mantém de pé.

De geração em geração
Aurora Pinho manteve a conexão com França viva na sua família. Ana, sua neta, de 16 anos, aprendeu francês com a avó ao longo da infância. Quis dar continuidade aos estudos do idioma na escola, e escolheu tê-lo como uma das opcionais.
“Acho que também foi um pouco pela minha relação com os meus dois avós ser incrível. Talvez quis prestar essa homenagem.”
Não conhecia com muitos detalhes a história de como os dois avós se conheceram até ouvir a entrevista que deram. Ana sempre soube, porém, o quanto o idioma havia sido importante para os dois, o que acrescenta beleza para si à língua francesa. “É mesmo bonito eles se terem conhecido em Paris, e passado menos de um ano já estarem a casar e estarem juntos até hoje.” Quando chegou à Escola Secundária José Gomes Ferreira, já tinha aulas de francês há dois anos. A opcional foi, portanto, uma escolha a se manter.
Ana nunca foi a Paris, nem teve muita oportunidade de o fazer. Lembra-se com carinho das imagens que viu do seu avô quando este retornou à capital francesa para correr uma maratona. Gostaria de recriar momentos como aquele. É um sonho que ainda está por se tornar real. Uma coisa já tem decidida, porém: irá visitar o Bataclan, e conhecer em pessoa um local tão importante para o nascimento da sua família. Apesar de, como os avós, não se ver a viver noutro lugar que não Portugal, acha indispensável a visita.
Tinha apenas 10 anos na altura em que se deram os atentados em França. Compreendia, porém, a relação da sua família com aquele sítio. À sensação de tristeza juntava-se a preocupação que sentia ao ver os acontecimentos serem comentados: “Naquela altura, eu pensava muito sobre isso dos atentados. Era uma coisa sobre a qual se estava a falar muito na escola e nas notícias.”
Em si, houve um medo de que a situação se repetisse:
“Lembro-me de ficar assim um bocadinho com receio. Os professores falavam muito sobre isso, e eu ficava a pensar e ficava com medo de que acontecesse cá ou que acontecesse em mais sítios e que fosse ainda pior.”

França em Portugal
As raízes familiares ligam Eva de Sousa a França. Basta regressar duas gerações atrás, aos seus avós, de origem portuguesa. Conheceram-se nas festas de S. Bartolomeu, em Ponte da Barca, onde o avô atuava no rancho. Casaram em 1973, ele com 26, ela com 20. Em agosto do mesmo ano, os recém-casados partiam para França. Por lá constroem uma vida e uma família: um filho e uma filha, que passam a infância e adolescência em Paris. O tempo ditaria rumos diferentes e a mãe de Eva regressa à terra dos pais, em busca de trabalho.
Nascida em Portugal, Eva traz de França apenas memórias dos tempos de férias. Por cá cresceu e não tem intenções de se mudar para lá, mas a ligação que corre na família levou-a a ingressar no Liceu Francês Charles Lepierre, em Lisboa. Era importante para a mãe que aprendesse francês, por isso estudou lá até ao nono ano. Com 17 anos, Eva está agora no 11º ano na Escola Secundária José Gomes Ferreira, na mesma turma que Ana.
No primeiro dias de aulas, depois dos atentados em Paris, os alunos do liceu do Francês em Lisboa juntaram-se para cumprir um minuto de silêncio em homenagem às vitimas / Fonte: SIC Noticias


Eva quando criança, no Liceu Francês. (fotografias cedidas pela própria)
Eva, naquela altura com 11 anos, estava em casa com a família quando soube dos atentados. Na televisão começavam a chegar as notícias de todos os ataques: às 21h20 explosões num estádio de futebol em Saint-Dénis; às 21h25 disparos contra cafés e restaurantes no 10º e 11º arrondissements de Paris; e às 21h40 disparos e tomada de reféns no Bataclan. Na altura ainda não se sabia, mas o conjunto dos ataques provocaria a morte de 131 pessoas e deixaria 413 feridas.
Em Portugal, Eva e a família acompanhavam a informação que chegava. A preocupação imediata era para com os avós, os tios e primos, que viviam em França. O telefonema para o indicativo 33 descansou-a. Estavam bem, seguros.
Os efeitos dos ataques continuaram a sentir-se nos dias seguintes também em Portugal. No Liceu Charles Lepierre os atentados eram o tema do dia.
“Na primeira semana, os professores falavam sobre isso. Diziam que a escola era um território francês e que nós tínhamos de ter cuidado, que podiam atacar também o liceu, mas felizmente não atacaram”, recorda Eva de Sousa.
Para a comunidade académica o tema era próximo, sendo 60% dos estudantes franceses ou franco-portugueses. O impacto sentiu-se no minuto de silêncio em homenagem às vítimas e nos debates que se promoveram sobre a liberdade de expressão.
Autor da foto utilizada: Gustavo Bom/Global Imagens
Nos primeiros dias após o atentado a preocupação era garantir a segurança de todos no liceu. O sentimento não era de que poderia acontecer um ataque, mas, havendo essa possibilidade em relação à comunidade francesa espalhada pelo mundo, prevenir através da implementação de medidas adicionais de segurança, como a limitação da entrada no liceu, polícia recrutada para estar nas imediações e a proibição de estacionar carros para deixar os estudantes.
“Quando voltei à escola havia polícia à porta, não nos deixavam aproximar do portão. Ficavam logo stressados, queriam que nós saíssemos logo dali”, conta Eva.
Com o tempo as conversas sobre os ataques foram esmorecendo, as medidas de segurança relaxando e gradualmente voltou-se à normalidade no Liceu Francês.
O medo que assolou o Bataclan e que se estendeu por toda a Europa deixou marcas em várias gerações. Desde Ana e Eva, ligadas a França pelas raízes familiares a Aurora e António Pinho, cuja memória amarga dos atentados não apaga o início daquela que foi a sua história de amor.
"Tenho memórias muito boas dos tempos passados lá e depois do que aconteceu acabo por me lembrar também daquela tragédia, mas penso que, apesar de tudo, as memórias positivas ainda prevalecem"